Vividness effect e self serving bias

Quando discuto com colegas/amigos meus sobre a eficácia de determinados tratamentos (homeopatia, acupuntura, etc…) ou a validade de determinadas crenças (pêndulos, adivinhação, etc…) sou muitas vezes confrontado com um conjunto de argumentos específicos.

As pessoas que discutem comigo muitas vezes nem se apercebem dos fenómenos que estão por trás dos seus argumentos que usam e que já foram descritos. Também não se apercebem que esses fenómenos são comuns a toda a gente e, como tal, os argumentos daí derivados banais. Ao final de umas discussões vocês já nem precisam de deixar o outro falar. Basta dizer:

“Já sei, agora vais usar o argumento…”.

Vamos pensar no seguinte argumento:

“Sabes, tinha uma amiga com um problema incurável. Recorreu a uma data de médicos. Fez isto e aquilo e a única coisa que funcionou foi a rezinha ao coelho da páscoa. Consegues explicar isto? Uma dor insuportável que ninguém consegue explicar ou tratar e com 3 tratamentos de estrelinhas doutra galáxia a pessoa fica curada.

Sabes eu sou céptico. Sou muito céptico mas também tenho uma mente aberta e só consigo explicar as melhoras daquela pessoa de uma forma.

E eu próprio tenho experiências pessoais bastante positivas. Tenho problema de saúde X e estaria bem pior se não fossem os tratamentos de pêndulos abençoados pelo Harry potter.”

Obviamente este argumento foi construído com base noutros argumentos e os tratamentos foram inventados (mas nem por isso menos credíveis. Efetivamente não existem diferenças entre as alegações feitas pelos homeopatas ou a criatividade de K. Rowling.). Mas qualquer pessoa consegue lembrar-se de uma qualquer discussão onde foram usados argumentos parecidos.

Lembram-se daquela rapariga simpática que se considerava muito céptica e acreditava em tapetes voadores? Ou aquele vizinho que só vivia a dar exemplos de testemunhos pessoais de outras pessoas? Quem sabe daquele amigo que tem um trabalho de treta, muito mal pago mas mesmo assim considerar que está bem melhor que a média?

São 2 fenómenos distintos. Mas todos eles influenciam a nossa maneira de pensar. Segue a lista explicada dos fenómenos em causa.

Vividness effect

Para a maioria das pessoas um testemunho pessoal carrega mais peso do que probabilidades estatísticas. Nós tomamos decisões com base na confiança. Se uma pessoa amiga nos diz que algo é bom nós acreditamos. A esse efeito chama-se vividness effect.

Dai surgirem questões como: “explica-me como foi possível a homeopatia tratar aquela pessoa? Se a tratou é porque funciona”.

Esta é uma característica humana que está tão enraizada dentro de nós que consegue destruir qualquer argumento lógico ou qualquer base de dados.

A homeopatia está há 200 anos sem conseguir produzir uma única prova de eficácia clinica. As explicações dadas são ridículas e as provas são conclusivas: a homeopatia não obtêm resultados superiores ao placebo. Mas rapidamente milhares de dados conclusivos são rapidamente esquecidos face a um qualquer testemunho pessoal do qual nem sequer temos a certeza que funcione.

A religião e o vividness effect

Outro exemplo ainda mais marcante é a influência da religião na saúde humana. A religião tem tido um comportamento absolutamente suicidário relativamente à saúde humana. As curas milagrosas tem-se mostrado absolutamente inúteis e contraproducentes.

Alguns exemplos históricos e atuais deveriam fazer-nos recear a influência do pensamento religioso na saúde humana: a oposição à vacinação porque a doença era um castigo divino, a oposição ao uso de preservativo que condenou milhares a morrerem e a sofrerem de sífilis no início do século XX e SIDA no final do século XX e inícios do século XXI, a oposição dos religiosos islâmicos à vacinação anti-poliomielite o que impediu a sua erradicação, a oposição à vacinação contra o cancro do útero em colégios católicos britânicos, circuncisão nos judeos, clitoridectomia em países africanos, etc…

Estudos recentes mostraram que as pessoas que decidiram usar tratamentos com base religiosa fizeram más escolhas relativamente à sua saúde. Mas quantas pessoas não recorrem à religião quando estão doentes baseados em testemunhos pessoais? O testemunho pessoal é a principal arma usada por confissões fundamentalistas para chamarem pessoas me necessidade!

Este é o poder do vividnes effect: o ser humano não baseia as suas decisões em estatísticas ou dados fiáveis mas principalmente em testemunhos pessoais.

Self-serving bias

A maioria das pessoas vê-se melhor do que os outros. Nós olhamos para nós próprios como sendo mais éticos, mais inteligentes, menos prejudiciais para a sociedade que os outros. Fazemos isso em relação a nós mesmos e a pessoas que admiramos.

É comum encontrar muitos crentes em energias mirabolantes, homeopatias, pêndulos, astrologia, corpos bioplasmáticos, adesivos lifewave e outras patetices considerarem-se como cépticos. Muitos até se consideram mais cépticos que a maioria das pessoas e quando encontram alguém que possa ser mais cépticos que eles mas tenha ideias semelhantes então o cepticismo do outros passa a ser falta de abertura de espirito. Obviamente que nós também temos mais abertura de espírito que os outros.

A pessoa dá validade à sua crença considerando-se céptica. “Se eu sou céptica e acredito que algo existe então é porque esse algo existe mesmo”.  Também existe outra variante que é contrária: ou seja critica-se o cepticismo como algo que não é válido.

Não só nos consideramos mais cépticos e temos maior abertura de espírito como também nos consideramos mais moralistas. Somos pessoas boas, mais éticas e empáticas que os outros. Considerar que estamos a defender uma mentira é uma ofensa. Associar as nossas crenças ao nosso sentido de moralidade não só implica aniquilar a capacidade de questionar essas mesmas crenças (uma vez que isso faria de nós pessoas más porque por obrigação teríamos de questionar o nosso sentido de moral e a ideia que fazemos de nós mesmos) como também destruir qualquer discussão objetiva com outras pessoas (a sua discordância implica necessariamente que são más e as suas opiniões discordantes são rapidamente vistas como ofensas.)

Self-serving bias na religião

Mais uma vez é possível observar este fenómeno no monoteísmo e as suas consequências nefastas para a história humana. Basta pensar nos imensos artifícios intelectuais que se usam para tentar dar validade lógica à existência de Deus. A maioria dessas pessoas considera-se céptica. O Sudário de Turim não está esquecido em algum arquivo histórico porque os crentes se acham cépticos e querem acreditar que o sudário tem realmente alguma relevância para as suas vidas.

E a maioria dessas pessoas sempre considerou a sua crença como essencialmente boa. O que faz das outras crenças essencialmente más. O que conduz inevitavelmente a descriminação religiosa, a perseguições, a intolerância, guerras e tortura. Basta pensar em como seria a história humana sem este fenómeno: Guerras Santas? Cruzadas? Santa Inquisição? Genocidios? Anti-semitismo? Etc…

Steven Weinberg, prémio nobel da física referia que todos os homens fazem coisas boas e coisas más. Existem pessoas boas e pessoas más. Mas para termos pessoas boas a fazermos coisas más precisamos de religião. Ele sabia do que falava.

O que está errado com isto?

O que está errado com este cenário? Se formos daquelas pessoas que supostamente falam com espíritos, advinham o futuro, ou estão interessados em ganhar uns cobres com umas rezas, então não há nada de errado. Estão a usar as ferramentas essenciais para poderem enganar o cliente/crente e lucrar com isso.

Os tele-evangelistas estão sempre a usar testemunhos pessoais para chegarem a uma audiência maior. E usam as crenças pessoais dos seus seguidores para os manter controlados: estás aqui porque és uma pessoa boa, és mais inteligente que a média e acreditas nisto… etc…

Mas quando somos profissionais de saúde temos obrigação de possuir um determinado conjunto de conhecimentos e uma bagagem intelectual que não nos confunda com aldrabões da IURD ou feirantes desejosos de ler a sina em troca de alguns euros. Não nos conseguimos livrar do vividness effect ou do self serving bias mas podemos tentar diminuir o impacto desses efeitos nas nossas escolhas.

A melhor forma de tomar decisões é baseá-las em dados fiáveis e nunca em testemunhos pessoais. É tomar decisões com base em dados neutros e nunca na base de me pensar mais inteligente ou cético que o outro e usar isso para fortalecer a minha decisão baseada em testemunhos pessoais e não em dados fiáveis.

E muito particularmente nunca selecionar um tratamento ou um conjunto de crenças com base nos sentimentos que exaltam em nós, ou com base no pensamento “eu sou mais bonzinho que o resto do rebanho”. Porque quando fazemos isso transformamo-nos em teólogos fundamentalistas capazes de cometer as piores atrocidades, de afirmar os piores disparates enquanto atingimos o estado nirvana a pensar “sou tão bonzinho”.

Vividness effect e self serving bias no mundo das energias

Recentemente tive uma discussão porque uma pessoa ensinava aos alunos que existem doentes vermelhos e azuis. Os doentes vermelhos são aqueles que se tratam com químicos. Esses doentes, que recorrem à medicina ocidental, são sanguessugas energéticas que sugam a energia do terapeuta. Qualquer acupuntor deve recusar tratar esses pacientes. Depois temos os pacientes azuis que dão a sua energia.

Qualquer pessoa com um mínimo de bom senso percebe que se perdeu qualquer noção de decência. Discriminar doentes? Com base em critérios totalmente estapafúrdios? Colocar o doente na posição de ter de escolher tratamentos que são complementares? Deixar o doente vulnerável sem a medicação? Entrar numa rota de colisão desnecessária, com base em ideias daltónicas irresponsáveis, com outras profissões de saúde, que oferecem tratamentos mais eficazes e essenciais à salvaguarda da vida humana?

No entanto é impossível ter qualquer tipo de discussão com pessoas que defendem este tipo de ideias. Por uma simples razão: as suas crenças são baseadas em self-serving bias. As crenças estão dependentes da sua noção de ser uma pessoa boa, moralista e ética. Tudo o que se opõe são forças do mal, teorias da conspiração provocadas pelas energias negativas, o materialismo ou qualquer outro tipo de disparate.

Eu, como qualquer pessoa, sofro do vividness effect ou do self-serving bias. Mas por isso não significa que as minhas escolhas sejam baseadas nesses fenómenos. É inadmissível que os acupuntores (outros também as fazem mas neste caso estou mais preocupado com a minha classe profissional) façam escolhas baseados nesses efeitos.

Os nossos tratamentos não funcionam porque existe um testemunho pessoal esporádico de sucesso. Os meridianos ou a energia ou qualquer outra patetice que escolham acreditar não existe porque se consideram mais cépticos que os outros. E muito menos por se considerarem mais bons.