Onde definir a fronteira entre a formação de classes sociais e permitir uma maior evolução das técnicas terapêuticas disponíveis? Esta é uma questão relevante e que gera imensas discussões. Nós devíamos lutar por uma classe social mas devemos com isso impedir a criação de novas técnicas e impedir o desenvolvimento de novas abordagens? Vamos explicar cada um dos pontos com mais calma.

A necessidade de classes sociais

A definição de classes sociais e o papel de cada uma é relevante em termos de profissões de saúde de forma a saber definir os campos de atuação de cada profissional. Falta de fronteiras entre profissões leva a atropelos e disputas sobre o papel que cada um deve ter. Quem assume responsabilidades? Quem é responsável pela aplicação de determinada técnica?

A correta definição do papel de cada profissional é essencial para prevenir conflitos entre classes. Como diz o ditado popular cada galo no seu poleiro.

A medicina tem vindo a passar por uma grande transformação devido ao surgimento de novas profissões de saúde a ao desenvolvimento da competências de profissões mais antigas. Os enfermeiros tem ganhado cada vez mais autonomia. Os fisioterapeutas tem evoluído para profissões cada vez independentes: já podem ter o seu gabinete sem supervisão médica e muitos testes e técnicas de ortopedia já são chamados de testes especiais ou técnicas de fisioterapia.

Isto não é negativo. O crescimento de cada profissão vai implicar uma adequação de conceitos e um estabelecimento social de fronteiras e definição de funções. E cada profissão tenta dinamizar ao máximo o seu leque de funções. A classe profissional garante mais poder e capacidade de sobrevivência se se tornar mais relevante no plano clínico.

A importância da inovação

A grande maioria das invenções e novas técnicas não são revoluções de conceitos. Não são teorias como a Relatividade geral ou a Física Quântica que mudaram por completo os paradigmas do pensamento vigente.

São pequenas e constantes inovações que fazem uma diferença enorme no dia a dia dos terapeutas. Por exemplo a mesma tecnologia usada para detetar radiação gama nas estrelas (e também aquela proveniente de detonações nucleares na atmosfera) pode ser usada para estudos médicos. A medicina Nuclear convencional baseia-se no uso de tecnologia que deteta radiação gama.

Quando entramos no mundo da terapia manual podemos observar como a adoção de novas ferramentas ou a sua aplicação de acordo com novos moldes de raciocínio traz inovação.

Se formos notar não há muitas inovações de fisioterapeutas que só ficaram pelo que aprenderam nas licenciaturas de fisioterapia. Todos eles fizeram formações em áreas não oficiais da fisioterapia, na osteopatia ou na acupuntura.

A EPI foi criada por um fisioterapeuta com formação em acupuntura; Meyers que desenvolveu o conceito das cadeias musculares começou com o método Rolf; punção seca é a acupuntura adaptada ao tratamento dos pontos gatilho. Ou seja é a violação de fronteiras profissionais, definidas pela competência própria de cada uma, que gera novos conhecimentos e faz nascer novas abordagens clinicas.

A política dos interesses e a ciência da clinica

Os médicos pegaram em protocolos da acupuntura tradicional chinesa e chamaram-lhes acupuntura médica, os fisioterapeutas pegaram em acupuntura e chamaram-lhe fisioterapia invasiva. Este último caso á ainda mais “provocador/revolucionário” na medida que a fisioterapia trabalha principalmente com as mãos e não com agulhas.

A política não vive separada da ciência. Os fisioterapeutas aprendem acupuntura, inovam e depois só ensinam a fisioterapeutas porque a ciência só pode ser para aquela classe profissional. Os médicos fazem o mesmo.

O método de busquets pode ser ensinado a osteopatas na França mas em Portugal só é ensinado a fisioterapeutas. Ou seja se uma classe consegue monopolizar o conhecimento ela vai faze-lo.

Muito disto tem a ver com o pensamento português. Somos portugueses, ainda temos aquela mentalidade muito limitada de capelinhas. Na inicio de uma universidade de medicina chinesa publicitavam-se pontos desconhecidos para a maioria dos profissionais, escolas de medicina chinesa que recusam partilhar o seu conteúdo programático porque consideram uma forma de espionagem pedagógica, profissionais e escolas que ensinam a esconder o conhecimento da concorrência. A SPMA tem um link para uma revista de acupuntura médica só para sócios médicos, mas qualquer profissional de saúde pode ir à fonte assinar a revista e receber todas as novidades. Os fisioterapeutas querem aprender com acupuntores ao mesmo tempo que lhes negam formações, mesmo dentro da acupuntura.

Se todos nos focássemos mais na ciência e na partilha de conhecimento e menos nos interesses políticos, então teríamos profissionais de diferentes backgrounds a fazer a mesma coisa e com resultados muito superiores.

O público e o privado entre lutas de classes sociais

60 consultas de fisioterapia sem qualquer resultado pode ser comum no público mas fica difícil de aceitar no privado com pacientes a pagarem caro por cada sessão.

Os fisioterapeutas ampliam o seu leque de formações de forma a dar resposta mais rápida e eficaz às queixas do paciente. É o normal e o desejável. Cada um de nós devia fazer o mesmo. Isto faz com que comecem a aprender técnicas de outras áreas como osteopatia e acupuntura. Ao mesmo tempo que aprendem novas disciplinas, aplicam na clinica e procuram desenvolver inovações tentando assegurar a sua predominância sobre outras classes das quais retiram conhecimento.

Os acupuntores em Portugal, enquanto classe, tem feito o contrário. Não procuram novos conhecimentos de outras áreas para integrar na sua, não conseguem promover inovação clinica (fica difícil com tão pouca formação científica) e esperam pelo momento que tudo ficará regulamentado esperando com isso que outras profissões deixem de usar agulhas de acupuntura sem a minima consciência que a lei só lhes protege o título e sem capacidade de inovar para ganhar um lugar no mercado de trabalho. Dificilmente vão para a público e no privado não terão capacidade de concorrência.

Os acupuntores deviam usar a mesma estratégia que os fisioterapeutas: invadir a área da fisioterapia (já pensaram em acupuntura não invasiva a contrapor fisioterapia invasiva?) e simultaneamente lutar pelos direitos enquanto classe. Isto permitiria maior inovação clinica, melhor formação científica, competitividade terapêutica, maior credibilidade profissional (devido a melhores resultados) e não colocaria em causa a sua afirmação profissional.

Conclusão sobre classes sociais de saúde e inovação clinica

Muitos dos melhores profissionais que existem não são aqueles fisioterapeutas puros, ou osteopatas puros ou acupuntores puros. São aqueles que saem da sua zona de categorização social e trazem para o mercado da saúde inovações terapêuticas. A maioria das formações mais apelativas foram feitos por profissionais que se encontram em mais do que uma área de conhecimento (osteoetiopatia, EPI, busquets, cadeias de Meyers, acupuntura neurofuncional, etc…).

Mas ao faze-lo estão a violar regras sociais e essa violação é rapidamente condenada sob um ponto de vista ético. Os acupuntores queixam-se que os fisioterapeutas invadem a sua área e os fisioterapeutas queixam-se que os enfermeiros de reabilitação estão a usurpar as suas funções. Na perspetiva de cada um ninguém está mais apto que ele a exercer aquelas funções.

A mistura constante de competências, entre as diferentes classes sociais, fará com que na prática não se consiga distinguir um profissional do outro. Esta mistura é evidente no público-alvo de muitas formações de saúde (fisioterapeutas, quiropráticos, osteopatas, etc…). Tem lógica distinguir classes sociais cuja função prática é indistinguível? Ou poderão estas áreas associar-se em algo parecido com as ciências radiológicas (radiologia, radioterapia e medicina nuclear). Poderão áreas como a fisioterapia, osteopatia e acupuntura associar-se numa grande associação de terapia manual (invasiva e não invasiva) de forma a manter a independência social de cada uma e permitir o livre fluir de experiências e conhecimentos?

É crucial levantar muitas questões: Onde se deve traçar a fronteira entre defender os interesses da classe e promover inovação e troca de conhecimento? Pode uma classe ter as suas funções bem definidas para aplicação em serviços públicos mas depois existir maior liberdade no privado de forma a incentivar inovação e terapêuticas mais eficazes? Tem lógica diferenciar a função profissional de tal forma que um doente para tratar uma tendinite tem de recorrer a 3 profissionais distintos quando um só pode aplicar uma terapia mais completa e integrada? Até que ponto é que considerações éticas altamente subjetivas devem impedir a troca de conhecimentos e experiências entre profissionais de áreas distintas? As necessidades de um mercado competitivo e dependente de inovação podem ser compatíveis com categorizações sociais limitadoras dessa inovação? Ou será necessário uma reformulação completa dos agentes sociais e das normas que os regem?