Triagem de doentes: a arte de não tratar os pacientes

Um dos aspetos mais importantes da prática clínica do dia a dia tem a ver com a triagem de doentes. Esta prática consiste em saber definir com clareza os limites da nossa ação e das nossas competências e capacidades. É um problema que afeta as diferentes áreas das TNC em grau diferente e que está muito dependente do bom senso e honestidade do clínico.

Triagem de doentes: saber definir os limites da nossa ação

Devemos aceitar os pacientes todos? Onde devemos definir os limites da nossa ação? No mundo da medicina chinesa, em particular nas correntes que tratam “síndromes energéticos” parece não existir nenhuma limitação. Se um paciente tem osteoporose, hérnia lombar ou síndrome do cólon irritável tem na realidade um “desequilíbrio energético”. Ou seja, temos de reequilibrar as energias e que melhor terapia do que a fitoterapia, chi kung e a acupuntura para regular as energias do corpo? Não existe nenhuma limitação clínica para “regular as energias”.
Muitos profissionais, na sua prática clinica, tem dificuldade em saber definir o que conseguem tratar ou não. Há falta de estudos, há falta de experiência, os professores nunca ensinaram quais eram essas limitações (eles também não as sabem!) e o ensino é feito no sentido de acreditar que essas limitações não existem.
Há uns anos, umas alunas pediram-me ajuda para tratar um doente. Quando comecei a falar com o doente notei que tinha queixas como zumbidos, que na maioria das vezes não tem cura (neste caso, devido à história clinica não tinha cura mesmo). Tive de dizer às alunas que não havia nada para tratar este paciente e como ele já tinha feito vários tratamentos sem sucesso aconselhei a pararem o tratamento. As alunas não aceitaram bem a minha opinião e continuaram a tratá-lo.
Parte do nosso sucesso está em saber fazer a triagem dos pacientes. Se o terapeuta conseguir separar os problemas que pode realmente tratar com sucesso daqueles em que não pode atuar minimamente então está a usar uma técnica inteligente para ter uma taxa de sucesso clinico elevada.
Esta triagem de doentes é importante por várias razões: (1) dá mais confiança ao terapeuta e aumenta a auto-estima, (2) deixa mais tempo livre para tratar problemas em que é bom e para os quais precisa de experiência, (3) passa a ideia de ser mais honesto e responsável e (4) cria uma imagem de competência aumentando a segurança do terapeuta e dos pacientes que o consultam.

Triagem de doentes: reencaminhar para outros colegas

Recentemente recebi um paciente com dor nas costas. Uma pequena contratura no trapézio superior foi tratada eficazmente em apenas uma consulta. O paciente de seguida referiu-me ter uma entorse tíbio-társica com início há quase 8 meses, num jogo de futebol, sem nunca ter sido corretamente tratada. O paciente apresentava muita dor quando fazia alguns movimentos do pé. Em apenas 3 consultas o paciente deixou de sentir dor e conseguia correr a direito, andar e fazer todos os movimentos do pé sem qualquer desconforto.
Depois de exercícios de reabilitação decidimos ver como o doente iria responder num jogo de futebol. O paciente começou a jogar sem qualquer problema mas depois, ao pousar o pé no chão, sentiu uma dor forte que o deixou a coxear. Pensámos inicialmente que seria uma recidiva mas quando comecei a analisar a dor notei de imediato que o problema era muito diferente. E ao notar iso também me apercebi que o tratamento exigia umas mãos osteopáticas bem mais desenvolvidas que as minhas. De imediato reencaminhei o paciente para outro osteopata que eu sabia conseguiria tratar o problema.
Muitas vezes mesmo quando se trata de um sintoma indicado para acupuntura ou osteopatia temos aquela ideia que ainda não temos a experiência ou conhecimento para tratar aquele problema. Neste caso a minha política é reencaminhar imediatamente esse paciente para um terapeuta mais capaz.
Precisamos saber definir as fronteiras das nossas ferramentas terapêuticas mas também da nossa experiência e conhecimento.
Existe o óbvio problema de saber definir uma fronteira entre a minha necessidade de tratar aquele paciente e ganhar experiência ou reencaminhá-lo de imediato. O desafio de ter um caso difícil, de pensar o diagnóstico, de sair da nossa área de conforto é essencial para o nosso crescimento profissional. É uma fronteira muito subjectiva, que não permite fazer muitos juízos de valor e que muitas vezes está mais dependente do bom senso do terapeuta.
Quando colegas me reencaminham pacientes nestas condições, por cortesia, permito que assistam às consultas ou depois descrevo-lhes o diagnóstico e procedimentos que fiz. Colegas a quem eu reencaminho pacientes também fazem isso comigo. Todos podemos beneficiar de um trabalho conjunto. Uns ganham mais saúde, outros mais dinheiro e outros mais conhecimento.

Triagem de doentes: saber integrar diferentes valências

Quando podemos dar por terminado o nosso trabalho? Um paciente recorre aos nossos serviços com queixas de lombalgia derivadas de uma hérnia lombar. Quando podemos dar por terminado o nosso trabalho? Quando desaparece a dor toda? Ou quando desaparece a dor mais aguda?
Tratar a lombalgia aguda, ou a dor irradiante é fácil na maioria das vezes e muitas vezes fica aquela dor tipo moinha que vai moendo o juízo e não responde aos tratamentos que trataram a dor aguda. Talvez porque essa dor tipo moinha não é para ser tratada com acupuntura ou osteopatia mas sim com exercício físico. Há dores que são devidas a uma maior fraqueza muscular e só o fortalecimento muscular vai ajudar a eliminá-la.
Um aspeto muito importante da prática clinica é saber integrar diferentes valências num todo coerente que permita ao paciente ser referenciado para as diferentes técnicas de acordo com as suas necessidades.
É comum, na minha prática, referenciar pacientes para nutricionistas e fisiologistas do exercícios garantindo profissionais mais adequados para determinada fase do tratamento ou uma abordagem mais completa.
Por exemplo na reabilitação de tendinites em atletas é comum associar acupuntura elétrica com treino excêntrico numa fase inicial e depois reencaminhar o paciente para um fisiologista de exercício ou osteopata de reabilitação que o consiga recuperar para uma atividade desportiva plena.
No tratamento da infertilidade é comum aconselhar nutricionistas que possam complementar o meu trabalho e melhorar os resultados clínicos.
Na minha opinião um bom terapeuta não é aquele que trata tudo (uma utopia com pouco sucesso clínico) mas sim aquele que sabe garantir ao seu paciente os melhores cuidados disponíveis.

Triagem de doentes: quando os tratamentos são ineficazes

Recentemente recebi um apciente. A queixa era indicada para osteopatia e acupuntura, a análise semiológica e as técnicas a aplicar estavam bem dentro das minhas capacidades. Desenvolvi várias abordagens mais acentuadas na acupuntura ou na osteopatia e ao finald e 3 ou 4 consultas não tinha resultado nenhum. Nenhuma das técnicas aplicadas conseguiu surtir melhorias substanciais no paciente.
Quando isto acontece é altura de reencaminhar para outro terapeuta. Sabemos tratar, é da nossa área, aplicamos tudo o que sabemos mas não obtemos resultados. Tentamos descobrir o que nos falta ou o que podemos melhorar mas não cosneguimos resultados satisfatórios. Então, talvez seja necessário outro par de olhos, outras técnicas, outro profissional com um perfil ligeiramente diferente do meu.
Podemos reencaminhar porque não é da nossa competência ou porque a nossa competência não é suficiente. A lógica é garantir que o paciente não perde tempo nem dinheiro com tratamentos desnecessários.

Exemplos negativos

Recentemente conheci uma colega que tinha tratado uma paciente para dor de costas. A paciente referiu que já tinha experimentado acupuntura no passado, para tratar síndrome do túnel cárpico, sem sucesso.
A minha colega, pelo historial e pelos sintomas (apesar de não ir tratar túnel do carpo) percebeu que o tratamento não tinha sido o mais indicado. O colega que a tratou não sabia como endereçar os sintomas daquela paciente mas também não soube reencaminhá-la para outros profissionais com mais experiência e eficácia no tratamento do síndrome do túnel do carpo. A paciente acabou no bloco operatório, algo que tinha tentado evitar a custo.
Num outro caso, um paciente falou comigo para saber se a acupuntura poderia ajudar no seu problema: afonia. O paciente tinha perdido a voz e já tinha feito 30 consultas de acupuntura sem sucesso. O acupuntor convenceu a comprar vários pacotes de sessões de acupuntura com a desculpa que tinha uma grande “desequilíbrio energético” e demorava tempo a tratar. Se fizermos um pacote de 10 sessões de acupuntura a 300 euros então o paciente já tinha pago 900 euros e o acupuntor continuava a insistir que ele precisava dos tratamentos. O rendimento a curto prazo não compensa o mau nome que se dá à profissão. Devia-se reencaminhar os doentes quando as nossas terapêuticas não são as mais indicadas e nunca se devia dar dezenas de consultas sem qualquer tipo de resultado.

Conclusão sobre a importância da triagem de doentes

A grande desvantagem ao fazer triagem de doentes é a óbvia perda de rendimento imediato. Mas isso é um pensamento pequeno que não consegue pensar no quadro geral nem no médio e longo prazo.
A triagem de doentes é tão importante quanto os resultados clínicos. A perda inicial de rendimento é compensada no médio e longo prazo com mais conhecimento e respeito por parte de comunidade em que o terapeuta se insere. Saber fazer triagem dos pacientes é desvalorizado mas é das estratégias mais importantes para se valorizar uma profissão.
Outro aspeto importante no reencaminhamento de doentes tem a ver com a nossa capacidade de conseguir criar uma rede viva de profissionais de alta qualidade por toda a nossa área de ação que trabalhem conosco garantindo um atendimento de qualidade aos pacientes que dele necessitam.
A melhor forma de valorizar uma profissão de saúde é garantir os melhores resultados clínicos.