Introdução aos problemas da farmacologia tradicional

Este artigo fala de desafios que se colocam à farmacologia tradicional nos dias de hoje. Ele não é uma razão para se detestar ou tentar denegrir a farmacologia tradicional. O autor do artigo costuma usar farmacologia tradicional chinesa em Clinica e para consumo próprio.

Este artigo serve para fazer pensar os diferentes leitores sobre problemas que se colocam hoje em dia à farmacologia tradicional.

 

Tradição fitoterápica vs atualidade farmacológica

Regra geral muitas drogas de farmacologia tradicionais vem acompanhadas de mitos e histórias fantásticas acerca dos seus poderes curativos. O inhame salvou os soldados de um exército derrotado morrerem de fome, a angélica chinesa foi dada a conhecer por um pássaro agradecido ao caçador por não o ter morto, etc…

Muitas das drogas usadas podem ter sido milagrosas no seu tempo, mas isso não se deve tanto só às suas características como também ás condições débeis em que os pacientes se encontravam.

Muitas drogas são milagrosas para doentes subnutridos mas se calhar não terão grande efeito em pacientes cuja patologia não se deva a subnutrição. A crises de fome e a diminuição da diversidade alimentar foi uma das moedas de trocas que fizemos com o aparecimento da agricultura. Se a agricultura nos permitiu criar mais alimento para sustentar mais pessoas também diminui-o a diversidade alimentar, aumentou a nossa susceptibilidade a fomes (devido à dependência de colheitas especifícas) e aumentou as doenças devido ao aumento da concentração populacional.

Pensemos na importância histórica do caldo de carne. Em tempos passados, quando quase ninguêm (antepassados agricultores) tinha acesso a carne e a anemia por falta de vitamina B12 era grande. Nesses tempos o caldo de carne salvava vidas. Era comprado a preço de outro e tinha resultados maravilhosos para pessoas com sintomas anémicos como cansaço físico e letargia.

Hoje em dia a maioria das pessoas que sofram de deficiência de vitamina B12 dificilmente será pela falta de consumo de carne (com exceção dos vegans). O caldo de carne salvou muitas pessoas com anemia mas atualmente a maioria das pessoas com anemia é por causas que o caldo de carne não trata.

No passado muitas plantas medicinais podem ter sido milagrosas… atualmente podem ser banais e os resultados ficarem aquém daquilo que a tradição preconiza, exatamente porque os pacientes atuais não sofrem das mesmas deficiências nutricionais que os seus antepassados.

Farmacologia tradicional e ambientalismo

As pessoas que defendem as farmacopeias tradicionais, regra geral, focam os seus argumentos nos problemas associados a “químicos” ocidentais e à necessidade de uma maior aproximação à natureza.

Vivemos com a ilusão que os nossos antepassados viviam junto com a natureza e a respeitavam. Qualquer alusão a extinções em massa cometidas por seres humanos parece ser somente uma consequência desse afastamento. Esta ignorância histórica e a ilusão do natural faz com que muitas vezes os terapeutas mais amigos do ambiente o ajudem a destruir.

A forma como a farmacologia tradicional está a ser explorada está a empurrar algumas espécies para a extinção, está a usar espécies que já se encontram em vias de extinção e a usar métodos desumanos em animais.

A remoção de bilis dos ursos e outros mamíferos placentários é disso um exemplo grotesco[1]. Mais de 12000 ursos se encontram em quintas de produção de bilis onde sofrem durante anos. São presos em caixotes que não os deixam movimentar-se, são feitas feridas e mantidas abertas artificialmente para se poder extrair a bílis. Muitas vezes a bílis acaba por vir contaminada com sangue e pus o que acaba por diminuir a sua qualidade enquanto droga terapêutica.

Outras espécies vegetais e animais estão a ser proibidas devido ao risco elevado de extinção.

Corrupção na farmacologia tradicional

Não acham estranho que pouco depois de saírem para o mercado sucesso de venda como Viagra e Cialis tenham começado a aparecer suplementos, feitos à base de plantas medicinais, que possuem os mesmos efeitos?

De um momento para o outro encontrou-se uma combinação perfeita de plantas que promove uma ereção forte e vigorosa durante 24 horas. Estranho?

Quando demos conta afinal não era uma combinação de plantas mas sim uma série de combinações de plantas com os mesmos efeitos que os melhores medicamentos ocidentais.

O mercado dos suplementos, especialmente na disfunção erétil e emagrecimento, apresentam níveis de corrupção muito elevados.

Nos EUA, a FDA já proibiu mais de duas dezenas de suplementos alimentares para disfunção erétil por conterem sildenafil… o ingrediente químico do Viagra.

Atualmente é cada vez mais conhecido o problema da adulteração dos fitoterápicos (chineses ou não) com medicamentos ou de fórmulas com plantas que não fazem parte da composição.

Direitos humanos

Muita gente não pensa nisto mas muitas vezes ao comprar determinados suplementos está a ajudar regimes ditatoriais a oprimirem a sua própria população. Isto pode parecer estranho mas foi um dos pedidos levantados por Kang Chol-Hwan um prisioneiro politico da Coreia do Norte que fugiu e pode contar as suas experiências de 10 anos no Gulag Norte-Coreano no livro Os aquários de Pyong Yang.

A Coreia do Norte usa o trabalho escravo de filhos de presos políticos para apanharem Ginseng coreano que depois é vendido ao exterior. Recentemente a Coreia do Norte tentou pagar parte da sua dívida externa à República Checa com 20 toneladas de Ginseng[2]. Quando compramos ginseng coreano ninguêm pensa que foi apanhado por escravos que são brutalizados dia sim dia sim e que esse dinheiro vai ajudar a pagar um programa nuclear e sustentar instabilidade internacional.

Pesticidas e agricultura

Outro problema que começa a ser mais falado está relacionado com a forma de agricultura intensiva, o desgaste dos solos, a contaminação das águas e o uso excessivo de pesticidas. Tanto a contaminação dos solos como o uso excessivo de pesticidas alteram o perfil bioquímico das plantas provocando alterações nas suas propriedades terapêuticas ou perfil terapêutico.

A contaminação com metais pesados também é um problema que afeta a qualidade dos suplementos fitoterápicos. Recentemente num site de venda de suplementos provenientes de medicina ayurvédica aconselhava-se cuidado com a prescrição a crianças por causa da possível contaminação com ferro.

Conclusão sobre problemas atuais da farmacologia tradicional

Existem vários desafios à farmacologia tradicional na atualidade. É necessário repensar a sua utilidade histórica com as necessidades reais de pacientes em pleno século XXI. É necessário uma maior consciencialização do impacto ambiental e social de algumas escolhas que se fazem em países desenvolvidos.

Existem vários sucessos. Começam a surgir alguns casos de sucesso com a consciencialização da defesa dos direitos dos animais e começam a trocar-se espécies em vias de extinção por outras nas formulações tradicionais.

Existe uma maior consciência e pressão para controlo de qualidade dos suplementos, e começam a surgir novas empresas que usam plantas tradicionais em formulações modernas e seguras. Mas isso não prescinde da nossa responsabilidade como consumidores finais.

A defesa cega da farmacologia tradicional faz com que se incentive técnicas de agricultura intensiva, abuse nos pesticidas ou facilite comportamentos altamente lesivos para as espécies exploradas e o próprio consumidor final. Também ninguêm pensa que a sua ação como consumidor final tem consequências morais e científicas.

Notas bibliográficas

[1] https://www.animallaw.info/article/detailed-discussion-bears-used-traditional-chinese-medicine

[2] http://www.telegraph.co.uk/news/worldnews/asia/northkorea/7938062/North-Korea-tries-to-pay-off-debt-with-ginseng.html