Recentemente o bastonário da ordem dos médicos publicou um artigo sobre medicina tradicional chinesa que, mais uma vez, inflamou o fígado dos profissionais da área. É difícil escrever sobre determinados assuntos e manter os ânimos serenos, especialmente quando existe um confronto ideológico tão grande e quando esses embates ideológicos se vêm desgastados por lutas de classes e interesses.

Este vai ser um artigo polémico que vai inflamar ainda mais os ânimos. No artigo surgem afirmações mais polémicas com exemplos reais. Esses exemplos servem para justificar as afirmações feitas e não para ofender as instituições, professores ou alunos das mesmas. O objetivo não é ofender mas sim tentar fazer-nos pensar um pouco no nosso caminho.

O artigo parte de uma premissa, simples e verdadeira no meu entender: o Bastonário da Ordem dos Médicos tem alguma razão no que escreve.

Os ofendidos

É fácil os profissionais da área sentirem-se ofendidos com o que o bastonário escreveu.

Acusou estas terapêuticas de provocarem efeitos secundários muito graves (aqui obviamente não se referia à homeopatia) mas a verdade é que não são nada quando comparados com os efeitos secundários da medicação ocidental.

Chama a atenção para o negócio lucrativo da comercialização de um certo tipo de curas cujo lucro é ridiculamente baixo, especialmente quando comparado com o lucro de curas da indústria farmacêutica.

Como profissional de medicina chinesa também me sinto ofendido por ver um representante da classe médica atacar desta forma a minha profissão quando a sua classe permite tratamentos para perda de peso que destroem por completo a tiróide aos seus pacientes. No final do tratamento ficam com o dobro do peso e um descontrolo hormonal que os vai levar a anos de tratamentos farmacêuticos.

Não acho justo uma pessoa que tem a casa mais suja que a minha que me venha dar lições de limpeza. Mas a verdade é que tudo isto é secundário. Não são esses os pontos essenciais do artigo.

Podem dividir-se em 3 os pontos essenciais do artigo:

1 – a medicina ocidental evoluiu muito ao longo dos anos

2 – A China está a adotar a medicina ocidental e científica (assumo aqui também o método científico no estudo científico da medicina chinesa)

3 – No ocidente existem profissionais que pretendem usar conhecimentos desatualizados e não comprovados (alguns abandonados faz muito tempo).

A questão que resta aqui levantar é simples: ele está errado em que ponto? O único ponto que algumas pessoas poderiam querer discutir é o terceiro ponto uma vez que os dois primeiros são mais que inegáveis.

Vamos então usar exemplos que justifiquem o que o bastonário quer dizer.

Tradição vs inovação

Enquanto a China adota cada vez mais a medicina ocidental e métodos científicos para estudar a medicina chinesa muitos de nós defendemos tratamentos que já nem os chineses lhes dão valor. Conhecimentos históricos que não são ensinados nas universidades chinesas e aos quais não lhes é dado nenhum valor clínico ou académico, pelo menos a nível institucional. Mas no ocidente são vendidos como o elixir da saúde. Existem dois exemplos que saltam à vista imediata.

Por exemplo, o instituo Van Ghi, vai iniciar um curso cronoacupuntura – tartaruga sagrada. Isto em pleno século XXI. Não escrevo estas linhas para ofender os professores ou alunos da instituição. Mas é uma pena que com todo o conhecimento existente continuemos a falar em “medicinas energéticas” e a brincar com conceitos ultrapassados como cronoacupuntura.

Num segundo exemplo temos a recente moda de “acupuntura holográfica” que parece resolver os problemas todos instantaneamente. Estamos a promover cursos de acupuntura como se fossem dietas milagrosas. Todos os anos surge uma nova. Mas não há raciocínio clínico.

Tem lógica aprender sistemas de acupuntura holográfica (cujos resultados, a existir, muito provavelmente, são derivados dos efeitos não específicos da acupuntura) quando não se sabe quais são os músculos que existem e qual a sua função?

Tem lógica falarmos de “canais de energia” quando nem sequer temos noção da fascia e da sua implicação para a saúde humana? Somos uma “medicina energética” que conhece energias desconhecidas no corpo para qualquer outra pessoa mas depois não sabemos biomecânica, não conhecemos ligamentos, articulações, músculos, nervos, etc… De um nervo não sabemos qual é o dermátomo, o miótomo ou o viscerótomo.

Não é de estranhar que existam acupuntores que reclamam conseguir tratar cancros terminais a ”regular as energias” e depois nem sequer têm o bom senso para saber tratar uma simples tendinite.

Devíamos estar a aprender métodos de acupuntura contemporânea e não com filosofias e esoterismos ultrapassados. Ao contrário do que a maioria das pessoas pensa, quanto mais antigo pior é e não melhor.

Enquanto a medicina ocidental evolui-o, enquanto a medicina chinesa começa a evoluir (na China) nós continuamos a brincar às energias e tradicionalismos.

É uma luta entre razão vs esoterismo, tradicionalismo vs inovação, ciência vs fé.

E o futuro?

A medicina chinesa tem grandes contributos para dar ao avanço do conhecimento humano mas para isso precisa usar os métodos de trabalho científicos e raciocínio científico e não teorias da conspiração, tradicionalismos fúteis e esoterismos ignorantes.

E precisa de profissionais com boa formação em química, fisica, anatomo-fisiologia, bioquímica, etc…

Quantas escolas se preocuparam em desenvolver cadeiras sobre bioquímica e estudar interações farmacocinéticas? Nenhuma. Mas há vários relatos de escolas onde os professores ensinavam os alunos que a fitoterapia não tem interações com medicação porque a primeira trata a nível “energético” e a segunda a “nível químico”.

Precisamos compreender o que são vias de sinalização celular e não sentir energias imaginárias, precisamos saber anatomia e não uma qualquer técnica baseada em animais sagrados, precisamos de raciocínio clínico objetivo e não de filosofias que nunca compreendemos e nunca nos demos ao trabalho de compreender.

Quando compreendermos a importância primordial destas alterações estaremos em condições de entrar em diálogos mais construtivos com outras profissões de saúde, mesmo com as guerras sociais do costume.

Conclusão

Já sei que muitas pessoas se vão sentir ofendidas por este artigo. Como é possível que alguêm da área concorde com o Bastonário? Como é possível que um profissional não reconheça a importância da energia? Como é possível que alguêm “ataque” as nossas escolas, instituições e crenças?

Antes de decidir ofender gratuitamente ou tecer qualquer comentário mais ignorante sobre “energias” ou teorias da conspiração, completamente desfasadas do contexto, pergunte-se: de que lado é que está a ciência? A razão? A inovação?

Por muito que não se goste, enquanto o bastonário (independentemente dos interesses da sua classe profissional) continuar a escrever com base na ciência, na inovação e na razão ele terá sempre mais razão que os seus detratores. Somos os nossos piores inimigos.

O futuro faz-se com ciência, com métodos de trabalho científicos, com estudo de anatomia humana, biologia celular e bioquímica. O futuro está dependente da nossa capacidade de desenvolver raciocínio clínico objetivo baseado em estruturas que realmente existem no corpo e tem ação no mesmo e não em “energias” imaginárias e manipulação de conceitos científicos.

E quando tivermos consciência da importância fulcral da ciência para o nosso futuro talvez seja possível rebater as críticas que nos fazem, não com ofensas gratuitas e estéreis, mas com factos e argumentação lógica.