Tendinite e objetividade clinica

Recentemente uma aluna abordou-me devido à necessidade de ajuda a tratar uma tendinite no glúteo. Ou supostamente uma tendinite no glúteo. Obviamente que eu não tinha a certeza se era uma tendinite e se a mesma era localizada no glúteo ou não. A aluna que falou comigo também não me referiu a origem do diagnóstico. De qualquer forma este facto acaba por ser secundário. Neste artigo eu quero comparar o tratamento que ela estava a fazer e a sua fundamentação e os erros do mesmo. De notar que este texto foi escrito com a concordância da aluna, que por motivos óbvios não vou indicar o nome.
A aluna referiu:

“Tenho um paciente com uma tendinite glutea, que por vezes irradia em termos de dor para a zona inguinal e de dormência para o joelho. Sempre que necessita de se sentar, e passa algum tempo nessa posição, sente um desconforto e até dor, o que o impossibilita de permanecer sentado, dificultando a condução, e o desempenho da sua actividade profissional.

Neste momento, estamos no 6.º tratamento e o protocolo aplicado é o seguinte:

Bil: 25Vb, 18v, 23v, 3f, 14f, 39vb

Uni com electroestimulação:  34vb, 60v; 31vb, 10Rt; 30E, 11f.

O paciente afirma não sentir já a inflamação, no entanto a dor ainda persiste impossibilitando-o de se sentar por longos períodos.”

Num momento imediato eu dei conta dos erros da aluna e compreendi o que ela pretendia com o protocolo. No entanto decidi interrogá-la acerca da lógica do protocolo. A aluna respondeu-me:

“As tendinites encontram-se no quadro da estagnação do qi do figado:

23v e 25vb por ser o shu-Mu do Rim

18v e 14f shu-mu do figado

39vb tonifica a medula e logo a produção de sangue

34vb e 3 f – regulam o qi do figado

60v (60B) ponto anti-inflamatório cujo meridiano passa na zona glutea comprometida

10rt (10BP) – por ser o ponto Mar do sangue e estimular a circulação do mesmo

31vb – elimina a humidade, o vento e o calor assim como alivia a dor

30e – regula o qi do aquecedor inferior, logo figado e rim)

11f- relaxa os tendões”

O mais impressionante é saber que muitos acupuntores vão concordar com o protocolo, outros vão achar que era preciso mover o qi do fígado com mais intensidade ou nutrir melhor o rim ou ativar com maior eficácia o sangue ou qualquer outro disparate. O pior desta história é que o protocolo da aluna foi aprovado pelo seu professor de acupuntura.

O problema principal do protocolo de acupuntura

O protocolo esta feito para tratar abstrações semiológicas mas em nenhum momento está feito para tratar tendinites.

De forma geral, o tratamento de uma tendinite com acupuntura é simples de compreender. Puntura-se a zona dolorosa do tendão e relaxa-se o músculo com eletropuntura. Pode-se fazer eletropuntura na zona de dor, podem associar-se outras técnicas à eletropuntura (treino excêntrico, cadeias musculares, etc…), podem fazer-se pequenas variações, etc… mas a base, em acupuntura, é relativamente simples.

Ou seja, no tratamento da tendinite a eletropuntura no músculo afetado é importante, os pontos locais são importante. São os mais importantes.

No entanto, olhando para o protocolo é possível observar:

1 – não existem pontos de dor;

2 – não existem pontos locais no músculo afetado;

3 – a eletropuntura foi feita em pontos distais sem qualquer referência com aquele músculo.

Com erros grandes deste tipo dificilmente se conseguem resultados a tratar tendinites ou qualquer outro tipo de problema.

Diagnósticos de vão de escada

Infelizmente, no ocidente, os especialistas em medicina chinesa, é quase tradição as pessoas fazerem diagnósticos de vão de escada. Os osteofitos passam a ser um vazio de yin e as tendinites uma estagnação de qi do fígado. Tudo com o crivo de muitos professores das escolas de acupuntura.

Na teoria básica ensina-se que o fígado controla os tendões. Automaticamente (no raciocínio de alguns acupuntores ocidentais) uma tendinite passa a ser uma estagnação de qi do fígado. No entanto uma estagnação de qi do fígado não é uma tendinite. Na realidade é um conjunto de sintomas e sinais psíquicos e as relações causais e relacionais que formam uns com os outros.

Por exemplo, numa estagnação de qi do fígado existe sempre fatores psicossomáticos grandes. “A dor agrava com estados de irritabilidade”. Mas neste caso não existe nada disso. É normal existir associação de tensão muscular em padrões de estagnação de qi do fígado. O stresse, a irritabilidade pode gerar maior tensão muscular. Mas isto não significa que exista associação com sintomas psíquicos ou envolvimento do “fígado”.

Poder-se-ia dizer que era uma dor por estagnação de qi. No entanto uma dor por estagnação de qi é caracterizada por: melhorar com movimento, dor mais suave tipo distensão. Não foram descritos sintomas em nada semelhantes.

E uma estagnação de qi não implica envolvimento do fígado. Uma dor por estagnação de qi pode tratar-se como um problema local e não precisa de pontos shu-mu para tratar os órgãos!

Acupuntura não é fitoterapia

Não só o diagnóstico foi inexistente como se violaram os princípios base da diferenciação entre acupuntura e matéria médica (fitoterapia). Focando-se muito no diagnóstico tradicional chinesa começa-se a usar a acupuntura para tratar a natureza do problema e não a sua localização. Este é um dos principais problemas no que concerne à objetividade clinica.
Acupuntura tem a ver com localização do problema. Isto é verdade para formas tradicionais de pensar a acupuntura (seleção de pontos locais e distais, seleção de pontos do mesmo meridianos, seleção de pontos de meridianos acoplados, etc…) e para formas mais científicas (trigger points, seleção de pontos de acordo com sistema nervoso, etc…). É preciso saber definir muito bem a fronteira entre acupuntura e matéria médica chinesa ou perde-se a objetividade clinica.
Obviamente que a acupuntura pode ser adaptada ao diagnóstico de padrões (feito a pensar na prescrição de matéria médica) mas isso não significa que possa violar o princípio base da utilização da acupuntura: localização do problema.

Misturas sem lógica que afetam a objetividade clinica no tratamento de tendinites

A explicação do protocolo mostra bem a total incompreensão do que é a medicina chinesa. Isto não é culpa da aluna. É culpa dos próprios professores que sabem menos que ela.

1 – o diagnóstico é inexistente e passa somente por umas associações simplistas com a teoria básica.

2 – o protocolo em nenhum momento é definido a partir de princípios terapêuticos, como deveria ser.

3 – os conceitos base estão completamente alterados e são usados sem nexo.

Pegando neste último ponto vou apresentar dois exemplos:

1 – O ponto 60B é usado por ser anti-inflamatório e pertencer a um meridiano que passa na zona afetada.

2 – 39VB tonifica a medula e produz sangue.

Nestes dois exemplos temos uma misturada incompreensível entre teoria básica chinesa e fisiologia humana. É verdade que o 60B passa na zona afetada. Mas daí a misturá-lo com um qualquer poder anti-inflamatório geral vai uma grande diferença.

Pegando somente no aspeto científico: a acupuntura tem efeito anti-inflamatório. Mas os principais pontos para tratar uma zona inflamada são os pontos locais (libertação de citoquinas pró-inflamatórias). E isto nada tem a ver com percurso de meridianos.

Podemos usar o 60B como ponto distal para tratar algumas queixas. É costume fazer-se isso e vem daí muita da importância clinica do sistema de meridianos. No entanto não tem qualquer sentido misturar os seus efeitos anti-inflamatórios (enquanto ponto local) e o seu uso no sistema de meridianos (enquanto ponto distal).

O segundo exemplo, com o ponto 39VB, é ainda mais grave. É verdade que em acupuntura tradicional chinesa é considerado o ponto de influência da medula. Mas a medula tem um sentido diferente da medula da medicina ocidental. Na fisiologia humana a medula óssea produz sangue. Mas o conceito de medula em MTC é diferente e não está relacionado com a produção de sangue.

Mesmo que tivesse isto seria completamente irrelevante no tratamento de uma tendinite.

Abstrações semiológicas e falta de objetividade clinica

O problema em não compreender a medicina chinesa e as suas limitações é que acabamos por tratar abstrações semiológicas em vez do paciente. Perde-se por completo a objetividade clinica.

A noção de conceitos como rim, fígado, sangue, qi são complexos e tem significados particulares que devem ser analisados em contextos específicos.

Qual a necessidade de usar os pontos shu-mu do rim e do fígado numa tendinite do gluteo? Os shu-mu do figado são usados, principalmente para tratar sintomas como dor no hipocôndrio, sabor amargo na boca, icterícia, vómitos, algia inter-costal. Os shu-mu do rim são usados em casos de diarreia, lombalgia, disfunção eréctil, dor menstrual, etc…

É verdade que algumas vezes são usados num contexto de abstração semiológica, no sentido de ajudar a definir os princípios que deram origem ao protocolo ou mesmo em protocolos onde a objetividade clinica se confunda com abstrações semiológicas, algo comum e inevitável na acupuntura tradicional chinesa. Mas isso não significa que se perca completamente a noção da realidade.

Como último exemplo gostaria de referir o ponto 30E. O ponto 30E localiza-se no baixo abdómen, por cima da sínfise púbica. É um ponto importante para regular o qi no aquecedor inferior… para sintomas menstruais e intestinais. Dificilmente o 30E tem qualquer tipo de utilidade numa tendinite no glúteo ou em qualquer outro músculo do membro inferior!

É esta incapacidade em compreender a linguagem da medicina chinesa, os contextos em que determinados termos se aplicam e a passagem da teoria para a prática clinica que faz com que os profissionais andem a tratar uma qualquer abstração em vez de um sintoma objetivo. A objetividade clinica consiste exatamente em compreender os contextos clínicos em que se aplicam os conceitos teóricos da medicina chinesa.

Conclusão

Este artigo não é um ataque à aluna que me esceveu a pedir ajuda. A mesma teve o interesse e a humildade de procurar outros profissionais para a ajudarem a lidar com o caso com o qual ela não estava a ter o sucesso desejado.

A culpa está no ensino, está nos professores que não tem noção do que é acupuntura clinica. Ensinam acupuntura sem objetividade clinica. As escolas falham na preparação de alunos impedindo que sejam competitivos a nível clinico.

Este caso, um entre muitos, é um exemplo claro daquilo que está mal na classe da acupuntura. Conceitos base mal compreendidos, diagnóstico superficial sem qualquer fundamentação clinica, ausência total de princípios terapêuticos (que é uma consequência de não se conhecer a mecânica intrínseca da MTC e que também gerou os problemas no interrogatório), sem noção dos limites de aplicação do modelo teóricos da MTC e total incapacidade de compreender as diferenças básicas nas abordagens dos diferentes tratamentos da medicina chinesa, neste caso acupuntura e matéria médica.