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história nutrição fitoterapia

História e histórias da tradição médica asiática

Shennong e a história da China Antiga

Parece-me que não tem muita lógica perguntar quando os chineses começaram a usar medicina herbal uma vez que, muito provavelmente, já os seres humanos antes de chegarem à China recorriam a medicina herbal.[1]

De qualquer forma quando o ser humano começou a ocupar o território asiático obviamente se viu obrigado a conhecer os efeitos das plantas locais de forma a conseguir tratar as suas maleitas.

Apesar de não ser possível definir o inicio exato de quando os chineses começaram a usar fitoterapia local, a lenda do inicio da matéria médica chinesa remonta a um agricultor com poderes sobrenaturais que viveu há perto de 4700 anos chamado ShenNong.[2]

No entanto Shennong não é a única divindade da mitologia da china antiga associada à origem da agricultura. Existiam outras divindades como Houji (Lord Millet ou Millet soberano), Houtu (terra divina), entre outros.[3]

As origens mitológicas de shennong

Three Kingdoms of Ancient China

De todas as divindades associadas à origem da agricultura, Shennong foi a mais importante.

E como todas as lendas chinesas, Shennong, não se limita a ser uma pessoa, ele é a descrição de todo um período histórico da China e os seus trabalhos não se limitam a uma única área do saber humano.

Shennong engloba as características de um filósofo político nas suas definições de ordem hierárquica e estrutura social, de um observador da natureza no estudo dos tipos de campos e de plantas, de um farmacêutico com gosto por desportos radicais no estudo das propriedades terapêuticas das plantas, de uma mistura de MacGyver com Leonardo DaVinci nas suas várias invenções agrícolas, etc…

Acima de tudo a sua personagem lendária altamente complexa descreve a evolução da sociedade chinesa, durante a idade da pedra, de uma sociedade coletora para uma sociedade baseada na agricultura com a formação de uma cultura, tecnologia e conhecimentos médicos próprios.

A sua complexidade pode analisar-se pelas diferentes perspetivas.

Ele é visto como um professor excepcional que cativa audiências, para os filósofos incorpora a ideia de um quase anarquista numa comunidade utópica primitiva baseada na agricultura, para os agricultores que trabalham no campo é um espírito que deve ser adorado com sacrifícios durante as colheitas anuais.[4]

Em mitologia politica ele é visto como o grande opositor do imperador amarelo encarnando a oposição a um sistema dominado pelo poder militar e por castigos através da adoção de ideias de uma sociedade agrícola que vive em harmonia sem necessidade de juízes, ministros ou castigos.[5]

De acordo com as lendas associada a Shennong, ele ensinou as pessoas a prepararem os campos e a fazerem as colheitas.[6]

Foi Shennong quem ensinou as pessoas a cultivarem os cinco cereais (que de acordo com as fontes podem variar pois podem mencionar arroz, feijões, trigo, diferentes tipos de milho) a examinar a terra e a cultivá-la de acordo com as características próprias dela (terrenos eco, terreno húmido, etc…)[7]

Ainda no campo da agricultura se dá crédito a Shennong por ter inventado o machado, a enxada, o arado e a alça do arado.

Usando estas invenções ensinou as pessoas a abrir terrenos baldios, usou a enxada para destruir ervas daninhas, criarem campos de cultivo, a escavarem poços, a irrigar a terra e a armazenar os cereais.[8], [9]

Shennong criou o calendário dividindo o ano solar em 24 partes (24 jieqi) que se relacionavam com alterações climáticas e definiam tempos para atividades agrícolas.[10]

Também fundou o mercado organizado ao meio-dia onde as pessoas se reuniam para venderem aquilo que tinham e comprar o que necessitavam e estabelecendo lugares hierárquicos na sociedade.[11]

Também provou muitas plantas medicinais de forma a compreender o efeito de cada uma podendo assim classificá-las.[12]

Em muitas versões lendárias refere-se que ele provou frutos de centenas de plantas de forma a reconhecer os seus sabores.[13]

Começou então a usar as plantas como drogas medicinais e deu origem ao sistema de matéria médica chinesa através da descrição das características dessas drogas[14].

Conta também a lenda que um dia foi envenenado 70 vezes e de cada vez tomou uma planta que inibiu os efeitos dos venenos e o salvaram.[15]

Esta lenda surge no “Livro do Príncipe de HuáiNán” possivelmente escrito há 2000 anos ou mais e no qual é relatado:

“Shen Nong […75]bebeu alguma centena de ervas e as águas de numerosas fontes para ensinar às pessoas o que era comestível e o que não era. Durante as suas investigações, chegava a ingerir 70 plantas tóxicas num único dia”.[16]

Outras fontes referem que isso aconteceu uma só vez[17], tendo como finalidade mostrar às pessoas o que não deveriam comer[18].

Além de ser o pai da farmacologia experimental[19], Shennong também é considerado como o pai da Medicina Chinesa uma vez que à sua lenda também está associado o estudo cuidado do pulso, a fundação da prática da acupuntura e moxibustão e a autoria de um livro[20] (que efetivamente só foi publicado 2000 anos após o tempo em que ele supostamente existiu).

No fundo talvez Roel Sterckx tenha sido capaz de definir Shennong muito bem ao escrever:

“the figure of Shennong represents a complex variety of achievements and civilizing acts, from high political philosophy to the invention of animal fertilizers.”[21]

Ventosas: uma pequena história

Ventosaterapia[22][23] consiste no uso de cúpulas (no ocidente são muito comum cúpulas de vidro), às quais é retirado o ar, por sucção ou combustão, diminuindo a sua pressão interior e criando vácuo.

Quando é criado um vácuo parcial, no interior da cúpula, esta é colocada em contacto com a pele sugando os tecidos com os quais entra em contacto.

História e indicações clínicas das ventosas

Atualmente este método terapêutico é usado no tratamento de uma série de problemas como dor abdominal, dor nas articulações, dor de cabeça (cefaleia), tosse, lombalgia, dismenorreia, furúnculos ulcerados ou mordedura de cobras venenosas.

No início, não tinha tantas aplicações clínicas quanto tem hoje.

O primeiro registo escrito das mesmas foi feito pelo herbalista e alquimista chinês, Ge Hong (281-341 A.D) e, as ventosas, tinham uma única indicação clínica: drenar pústulas/lesões purulentas.

Nem eram feitas de vidro ou de bambu. As primeiras ventosas eram feitas de chifres de animais. O seu nome chinês jiaofa significa “técnica do chifre”.

Durante a dinastia Tang esta técnica conhece novas aplicações clínicas. No clássico Necessities of a Frontier Official, as ventosas eram aconselhadas no tratamento de condições médicas semelhantes à tuberculose pulmonar.

Na dinastia Qing, Zhao Xuemin escreveu o clássico Supplement to Outline of Materia Medica, onde defendia o valor desta técnica terapêutica no tratamento de diversos sintomas desde tonturas e cefaleia (dor de cabeça) por vento externo até à dor abdominal.

Evolução tecnológica das ventosas

Por esta altura as ventosas tinham evoluído. Os chifres de animais já só sobreviviam no nome da técnica. Agora as cúpulas eram feitas de bambu, cerâmica, ferro e latão.

Com estas novas cúpulas era possível uma maior poder de sucção o que tornou a técnica ainda mais apetecível para os médicos.

No entanto nenhuma destas cúpulas poderia bater uma invenção muito importante que iria alterar para sempre a transparência desta técnica: o vidro.

O vidro era mais resistente que as chifres, não se danificava com o contacto com o fogo como o bambu, não partia facilmente como a cerâmica e eram mais baratos e fáceis de fazer que as ventosas de ferro ou latão.

As ventosas de vidro também apresentam uma vantagem que mais nenhuma ventosa tinha tido: é transparente.

A transparência do vidro permite ao acupuntor ver a resposta da pele à sucção, coisa que nunca fora possível com chifres, cerâmica, bambu e muito menos latão.

Inicialmente foram usados copos de vidro o que originava alguns problemas uma vez que podiam partir. No entanto este problema foi resolvido fazendo ventosas mais grossas e com uma base forte.

Mesmo assim, as ventosas de bambu ainda subsistem em muitos hospitais chineses e em algumas casas particulares de acupuntores ocidentais – como a minha, onde serve bem para decoração. No entanto, no Ocidente foram as ventosas de vidro a vingar.

Diferentes tipos de ventosas adaptados a diferentes necessidades

Atualmente existem ventosas de diferentes tamanhos de forma a serem mais eficazes no tratamento de determinados sintomas em regiões especificas do corpo.

As mais pequenas podem ser usadas em regiões que não são planas, como os joelhos. Nos joelhos seria difícil às maiores manter a sucção.

Ventosas grandes por seu lado podem ser usadas em regiões planas, como as costas.

Além dos seus diferentes tipos, existem variações da técnica.

Desta forma pode usar-se óleo para se mover a ventosa de um lado para o outro.

Pode fazer-se sangria inicial e depois colocar a ventosa para ajudar a remover o sangue estagnado.

Também se pode usar com acupunctura – colocando ventosa sobre uma agulha -, muito comum no tratamento de reumatismos, ou com plantas medicinais.

Atualmente não só se conhecem diversas indicações clínicas – dor articular, dor abdominal, gripes, lombalgia, dismenorreia, etc… – como são conhecidas contra-indicações como alergias na pele, convulsões, febre alta, feridas ulceradas, no abdómen ou região lombar de grávidas, etc….

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Combinação de pontos de acupuntura: um passeio pela história da acupuntura

Ao olhar para os princípios de combinação de pontos de acupuntura surge um dado curioso.

A combinação de pontos de acupuntura parece ser um espelho da evolução da teoria dos meridianos.

Ao longo de todo o raciocínio lógico na seleção de pontos está imprimida a sua história, sendo que cada um dos princípios representa um passo evolutivo ao longo da história da acupuntura.

Para mostrar este ponto de vista irei analisar os princípios mais importantes da combinação de pontos como se fossem etapas históricas da acupuntura.

Pontos de acupuntura locais, distais e sintomáticos

Este é o primeiro princípio da combinação de pontos de acupuntura. Nele estão expressos conhecimentos primários despidos de qualquer contexto teórico.

Os pontos locais foram, provavelmente os primeiros a serem descobertos pelo simples facto de se pressionar uma dada zona quando se tem dor.

Com o tempo encontraram-se pontos fora das zonas afetadas mas com capacidade de aliviar os sintomas.

Por exemplo o 37E, na perna, trata diarreia e dor intestinal; o 34VB, na perna, trata dor no hipocôndrio, etc…

Estes pontos são locais e distais pois a queixa que tratam está bem localizada no corpo. Dor no joelho ou dor de barriga são queixas que se localizam facilmente no corpo.

A acupuntura tem muito a ver com a localização da queixa. Isso é bem patente ao longo de toda a combinação de pontos.

No entanto existiam alguns sintomas aos quais os chineses não conseguiam localizar numa parte do corpo.

A febre, por exemplo, afeta o corpo todo e não somente a região do peito ou das lombares.

Na medida que encontraram pontos de acupuntura que aliviavam estes sintomas não localizáveis designaram-nos de sintomáticos.

Pontos do mesmo vaso

Na medida que os chineses encontravam mais pontos de acupuntura para tratarem o mesmo sintoma tiveram de levantar a questão: o que liga estes pontos?

Se eles tratam o mesmo sintoma tem de existir algo a ligá-los.

Por exemplo, o ponto 5TA, localizado no antebraço trata dor de cabeça temporal.

Então tem de existir algo a ligar esse ponto aos pontos locais que tratam dor de cabeça temporal.

Dessa forma os chineses estipularam a existência de vasos longitudinais.

Um vaso longitudinal corre o corpo todo ligando as suas partes. Este é um dos princípios do holismo na acupuntura tradicional chinesa.

O vaso permite às diferentes zonas do corpo comunicarem entre si. Mas isto também indica que os vasos longitudinais não são mais do que formas de classificar pontos com as mesmas indicações clinicas.

Este é o segundo ponto evolutivo importante na história da acupuntura.

Os chineses ligaram os diversos pontos que conheciam e deram um substrato teórico de forma a poderem usar esses pontos na clínica.

Daí surge o segundo principio da combinação de pontos de acupuntura: seleção de pontos de acordo com o mesmo vaso longitudinal.

Vasos acoplados e  com o mesmo nome

Existem dois princípios de combinações de pontos de acupuntura que podem ser agregados num único exemplo.

Eles representam a mesma etapa evolutiva mesmo que com significados clínicos distintos.

Seleção de vasos acoplados e do mesmo par ou com o mesmo nome (Shao Yang, Jue Yin, etc…).

Ao estipularem a existência de vasos longitudinais e ao ligarem esses vasos ao longo do corpo os chineses acabam por reconhecer que uma mesma zona é atravessada por vários vasos.

Por exemplo, no abdómen passam diversos vasos como seja o baço, o rim e o estômago.

Pela localização dos seus pontos eu posso combiná-los para tratar a mesma queixa.

Por exemplo os pontos 15BP, 25E e 16R encontram-se todas na linha horizontal do umbigo. Todos eles são locais e podem ser usados para tratar sintomas intestinais.

Uma vez que um vaso não é mais do que um conjunto de pontos com as mesmas indicações clinicas  e que existem vários vasos a passar na zona (logo com indicações clinicas semelhantes) então deve existir algo a liga-los.

Os princípios de combinação falados são uma consequência da construção inicial do sistema de vasos longitudinais. São dois pois devem-se à complexidade do percurso dos diferentes vasos.

Por exemplo o vaso da vesicula biliar (VB) é acoplado ao do fígado (F). Ambos se encontram no membro inferior e no tronco.

É normal usá-los em conjunto para tratarem sintomas digestivos relacionados com o seu percurso, sendo a dor no hipocôndrio um exemplo disso.

No entanto o vaso da VB faz par de vasos com o do triplo aquecedor (TA). Também podem ser usados para tratar dor no hipocôndrio mas neste caso tratam uma série de outros sintomas que não se englobam na combinação anterior.

Rigidez na nuca, zumbidos, dor de cabeça temporal são alguns dos exemplos. Todos estes sintomas estão localizados em zonas atravessadas pelos dois vasos.

O princípio de seleção de pontos de acupuntura de acordo com o mesmo vaso marca o nascimento do sistema de vasos longitudinais. Os dois princípios agora referidos marcam a sua maturação num conteúdo teórico mais complexo.

Reflexões sobre a história…

história nutrição fitoterapia

… da nutrição e fitoterapia

Há um aspeto relevante quando se analisa a aplicação de um dado tratamento. A qualidade de vida condiciona a resposta aos tratamentos. Isto é verdade para a fitoterapia e alimentação.

Sabemos que somos mais saudáveis do que os nossos antepassados. Uma notícia recente referia que em média os seres humanos hoje eram 10 cm mais altos que os seus antepassados há 100 anos atrás.

Basta uma visita por um museu do traje e ver o tamanho dos sapatos que os nossos antepassados usavam para percebermos… que os seus pés eram muito pequenos.

Nenhum imperador chinês, nenhum rei da idade média alguma vez conseguiu usufruir dos luxos e da abundância que dispomos hoje em dia em termos de quantidade de alimentos, qualidade e diversidade.

A banana estava para Carlos Magno como o Cacau para o Imperador Amarelo!

O açucar teve sucesso imediato no ocidente porque permitia comer carne podre com um sabor menos repulsivo.

O sucesso foi tanto que as cáries dentárias e os dentes podres provocados pelo açucar se tornaram uma marca de prestígio social. Os pobres escureciam os dentes de forma a simular cáries dentárias.

E sim, os nossos antepassados comiam carne podre. E pão com bolor. E mais uma data de alimentos que não estavam em condições de ser consumidos. E esses eram os sortudos.

A grande e esmagadora maioria passou fome e viveu em estado de subnutrição. E esta baixa qualidade de vida condicionava o valor que a fitoterapia e alimentação teriam para essa pessoa.

Para um paciente que passava fome e que se encontrava com anemia por falta de vitamina B12, então caldos de carne devem ter sido medicamentos milagrosos.

Para uma sociedade em que a subnutrição, alimentos podres e plantas de medicina erradas era uma prática comum então um tratamento certo com a erva certa deve ter sido considerado absolutamente milagroso.

Nos dias de hoje, os doentes vacinados e bem alimentados, valorizam a fitoterapia de acordo com os relatos dos seus antepassados subnutridos.

Como 2 frutas mudaram o rumo da história

Quando se pensa que foram frutas que impediram Napoleão de construir uma frota para lutar contra os ingleses então nota-se a importância que a fitoterapia e alimentação tiveram para os nosso antepassados.

Quando os descobrimentos tiveram inicio surgiu uma nova doença.

Alguns marinheiros apresentavam apodrecimento das gengivas, destabilização dos dentes, dores articulares entre outros sintomas. Esta doença ficou conhecida como escorbuto.

Foram os ingleses que descobriram a cura para a doença usando limões e laranjas. O escorbuto é uma doença provocada pela falta de vitamina C sendo que o limão e a laranja são ricas nessa vitamina.

Quando os ingleses estavam em guerra com Napoleão levaram os Navios de guerra até portos franceses e cercaram os portos não permitindo que Napoleão desenvolvesse uma frota para lhes fazer frente.

Foi a suplementação constante de limões e laranjas que permitiu à marinha inglesa manter o cerco a portos franceses durante largos meses, impedindo Napoleão de construir uma frota!

O super alimento… totalmente desnecessário

No Norte de África (e não só!) existe uma planta através da qual se faz um chá. Este chá é de extrema importância para as populações locais pelas suas propriedades nutricionais.

A Moringa é um género com várias espécies associadas que crescem em climas tropicais.

Historicamente é uma planta muito conceituada pelos seus benefícios alimentares e atualmente pelos estudos que mostram a sua riqueza fitoquímica.

Mas se em populações subnutridas, esta planta (rica em vitamina A, C, potássio, etc…) pode fazer a diferença, qual o seu real impacto numa população com amplo acesso a maçãs, bananas, morangos, mirtilos, limões, laranjas, batata doce, cenouras, couves, etc…

O seu perfil de antioxidantes pode ser muito apelativo mas numa sociedade vacinada, bem alimentada e com uma concorrência antioxidante grande (café, chá verde, rooibos, etc…) qual o espaço para a Moringa?

Em determinados casos mais graves (e raros), em que uma qualquer pessoa, se deixe levar pelo marketing fantástico online pode incorrer no risco de ficar prejudicada pois o excesso de antioxidantes desta planta pode ter o efeito contrário a nível do Fígado.

De super alimento necessário à sobrevivência a marketing fraudulento com potenciais riscos para a saúde é uma fronteira muito ténue.

Fitoterapia e alimentação nos dias de hoje e antigamente

Será que o efeito tónico de uma angélica chinesa terá o mesmo efeito numa mulher ocidental do século XXI bem nutrida com comida abundante e suplementos variados e numa mulher chinesa do século IV d.C. subnutrida e com diversas mazelas devido a sequelas de doenças que nunca foram totalmente curadas?

Os limões, cultivados na península Ibérica, eram tratados como frutos milagrosos pelas populações do Norte da Europa.

Os inhames e a Moringa ficaram famosos na história da China e Índia, respetivamente, pelo seu uso para aumentar a resistência dos militares.

Mas hoje em dia, as populações com melhor qualidade de vida e maior longevidade praticamente não os conhecem.

O Inhame ou a Moringa foram completamente desnecessários para melhorar o nível de saúde das classes médias europeias e americanas.

Não escrevo estas linhas para menosprezar o papel histórico ou atual da fitoterapia e alimentação.

Pretendo chamar a atenção para o facto que tem de se tomar cuidado quando se abordam perspetivas históricas da fitoterapia com as necessidades das populações da atualidade.

… do placebo na tradição médica

Um dos primeiros problemas que se colocam é relativamente ao placebo na história da Medicina Chinesa.

Atualmente a ciência moderna desenvolveu ferramentas que nos permitem distinguir entre efeito placebo e efeito real de um dado medicamento ou estratégia terapêutica.

No entanto, para os chineses o efeito placebo deve ter parecido sempre um efeito clínico real.

Isto levanta várias questões porque do ponto de vista de uma sociedade sem formação científica que não diferenciou o efeito placebo do efeito real pode significar que o efeito placebo foi elevado ao nível do efeito real e desenvolvido a ponto de se tornar uma intervenção clínica válida… pelo menos sob o ponto de vista histórico-cultural.

Teríamos então um choque entre duas culturas/dois tempos diferentes.

Deparei-me com um exemplo real e extremamente interessante quando dava uma aula da cadeira de Arte da Saúde e Longevidade.

No currículo dessa disciplina consta um capítulo intitulado “Métodos Naturais no Cultivo da Vida e Reabilitação”.

Entre os diferentes métodos encontram-se várias estratégias desde “fortalecer-se com a ajuda de um amigo”, “abster-se da raiva (algo muito importante para os chineses!”, “sugestão”, “desportos” e um outro chamado de “cores”.

Sim, falo do uso de cores como método terapêutico. Os chineses consideram que as cores agradam aos olhos e refrescam a Mente (Shen) estimulando o aparecimento de certas emoções.

Desta forma usam-se cores mais agressivas como o vermelho para tratar pacientes letárgicos ou depressivos.

A cor vermelha ajuda o paciente com depressão a ficar mais activo e feliz. Pessoas com excesso de alegria deveriam usar cores tristes como o branco ou o preto (para os chineses estas cores são tristes!).

O que tem isto a ver com placebo? Muitos alunos meus referem-me que o branco não é uma cor triste. Muitos amigos meus também. E o que tem isto a ver com placebo?

A relevância da cor nas reflexões sobre placebo

Uma análise aos medicamentos disponíveis no mercado mostrou que medicamentos estimulantes são por hábito vermelhos, cor de laranja ou amarelos, enquanto os calmantes se apresentam geralmente de cor azul ou verde, por exemplo.

Estudos recentes mostraram que comprimidos de cor verde eram mais eficazes a tratar pacientes com ansiedade do que pílulas de cor vermelha[24]. A cor vermelha estimula, enquanto a cor verde acalma.

Um paciente com ansiedade não precisa ser mais estimulado. Só precisa ser acalmado. Este efeito não se devia a efeitos bioquímicos no organismo mas somente ao significado cultural das cores.

É puro efeito placebo induzido culturalmente. Por isso os meus alunos acham estranho quando lhes falo na cor branca. Para os ocidentais a cor branca não é uma cor triste. O preto é que é uma cor triste. Para os chineses o branco é usado para fazer o luto.

Historicamente o uso das cores como método natural no cultivo da vida mostra bem como a Medicina Chinesa usou o efeito placebo e o transformou numa arma clínica para combater uma série de sintomas associados a doenças mentais.

O placebo no drama da acupuntura

As manipulações realizadas na agulha podem ter várias finalidades. Uma delas consiste em “chamar o Qi” ou seja, obter uma sensação física de choque eléctrico, por exemplo.

Existem várias técnicas que podem ser usadas desde “massajar o trajecto do meridiano”, “tremer” (consiste em tremer a agulha) ou a minha favorita “dar o piparote”, entre outras.

Estes não são os únicos métodos. Além de “atingir o Qi” também se pode “fazer circular o Qi” com 6 técnicas de manipulação, “conservar o qi” com 2 técnicas de manipulação, “Tonificar, dispersar ou harmonizar” com mais de 10 técnicas de manipulação.

Na manipulação da agulha fina existem técnicas simples e técnicas mais complexas com nomes hollywoodescos como “o dragão verde agita a cauda”, “acender o fogo da montanha”, “o tigre branco balança a cabeça” ou “a tartaruga verde procura o ponto”.

Ao todo existem mais de 20 técnicas diferentes de manipulação. E só quando pensamos em termos de Medicina Chinesa. A Medicina Japonesa acabou por desenvolver outras técnicas.

Na MTC as técnicas de manipulação de agulhas foram elevadas ao estatuto de arte. Na China actual não se usam, por exemplo, guias para punção.

As guias (uma invenção japonesa do século XVI) são um invólucro de plástico que ajudam a agulha a passar mais rapidamente os centros nervosos da pele. Na China são uma heresia.

E o que tem as técnicas de manipulação de agulhas a ver com o efeito placebo?

Para responder a esta questão é importante o leitor notar que existem partes da MTC que podem ser considerados universais porque são comuns a todas as escolas e existem outras partes que são mais particulares que universais.

As técnicas de manipulação da agulha são, de forma geral, universais. O leitor consegue encontrar livros que as definam. Qualquer livro de acupuntura apresenta algumas dessas técnicas. Mas a nível particular não tem valor nenhum.

Uma das coisas que mais me divertiu na China era saber que as técnicas de tonificação de um acupuntor eram as técnicas de dispersão de outro acupuntor. Todos diziam a mesma coisa: “dá mais efeito assim”.

A prática não acompanha, na maioria das vezes a teoria. No que concerne às técnicas de manipulação a teoria é, muitas vezes, uma perda de tempo. Na prática cada um faz o que quer e todos gritam por sucesso.

Já sei. O leitor vai perguntar: e o que é que isto tem a ver com as nossas reflexões sobre placebo?

Os estudos científicos (finalmente!) mostraram que quanto mais elaborado é um tratamento placebo mais efeitos tem[25].

Os bons dramas dão excelentes placebos. Por exemplo, uma injecção de uma solução salina (sem qualquer tipo de princípio activo) mostra-se mais eficaz do que um simples comprimido. A injecção é uma intervenção mais dramática.

Estudos com placebos sem rituais e com placebos com rituais mostraram que os placebos com rituais são mais eficazes. Se os bons dramas dão excelentes placebos, não há placebo que não goste de um bom drama.

Atendendo ao facto de diferentes acupuntores manipularem de forma antagónica as agulhas para obterem o mesmo efeito, atendendo ao facto da acupuntura chinesa ser tão diferente da acupuntura japonesa – no que concerne à profundidade de manipulação, por exemplo – podemos levantar a questão:

Até que ponto as manipulações de agulhas de acupuntura não são o drama que nutre o placebo?

Onde podemos nós separar o placebo das manipulações da sua verdadeira eficácia?

Se as manipulações de agulhas não forem mais do que uma forma de estimular o efeito placebo, então a Medicina Chinesa acabou por elevar o placebo a uma forma de arte.

Se o primeiro artigo mostrava que o placebo poderá ser elevado a técnica terapêutica válida, na Medicina Chinesa, este artigo mostra que, em determinadas áreas o efeito placebo pode ter sido elevado à condição de arte.

Referência Bibliográficas

[1]GUANGYAO, Wang; The History of Chinese Herbal Medicine

[2] GUANGYAO, Wang; The History of Chinese Herbal Medicine

[3] YANG, Lihui; AN, Deming; Handbook of Chinese Mythology, col. Handbooks of world mythology, ed. ABC CLIO, 2005, ISBN 1-57607-807-8, pág. 70

[4] STERCKX, Roel; In The Fields of Shennong, An inaugural lecture delivered before the University of Cambridge on 30 September 2008 to mark the establishment of the Joseph Needham Professorship of Chinese History, Science and Civilization

[5] STERCKX, Roel; In The Fields of Shennong, An inaugural lecture delivered before the University of Cambridge on 30 September 2008 to mark the establishment of the Joseph Needham Professorship of Chinese History, Science and Civilization.

[6] GUANGYAO, Wang; The History of Chinese Herbal Medicine

[7] YANG, Lihui; AN, Deming; Handbook of Chinese Mythology, col. Handbooks of world mythology, ed. ABC CLIO, 2005, ISBN 1-57607-807-8, pág. 70

[8] YANG, Lihui; AN, Deming; Handbook of Chinese Mythology, col. Handbooks of world mythology, ed. ABC CLIO, 2005, ISBN 1-57607-807-8, pág. 70-71

[9] YANG, Lihui; AN, Deming; Handbook of Chinese Mythology, col. Handbooks of world mythology, ed. ABC CLIO, 2005, ISBN 1-57607-807-8, pág. 70-71

[10] YANG, Lihui; AN, Deming; Handbook of Chinese Mythology, col. Handbooks of world mythology, ed. ABC CLIO, 2005, ISBN 1-57607-807-8, pág. 70-71

[11] STERCKX, Roel; In The Fields of Shennong, An inaugural lecture delivered before the University of Cambridge on 30 September 2008 to mark the establishment of the Joseph Needham Professorship of Chinese History, Science and Civilization

[12] GUANGYAO, Wang; The History of Chinese Herbal Medicine

[13] YANG, Lihui; AN, Deming; Handbook of Chinese Mythology, col. Handbooks of world mythology, ed. ABC CLIO, 2005, ISBN 1-57607-807-8, pág. 70

[14] STERCKX, Roel; In The Fields of Shennong, An inaugural lecture delivered before the University of Cambridge on 30 September 2008 to mark the establishment of the Joseph Needham Professorship of Chinese History, Science and Civilization

[15] GUANGYAO, Wang; The History of Chinese Herbal Medicine

[16] SAMPAIO, João; História da Medicina Tradicional Chinesa, 2002, pág. 22

[17] YANG, Lihui; AN, Deming; Handbook of Chinese Mythology, col. Handbooks of world mythology, ed. ABC CLIO, 2005, ISBN 1-57607-807-8, pág. 71-72

[18] STERCKX, Roel; In The Fields of Shennong, An inaugural lecture delivered before the University of Cambridge on 30 September 2008 to mark the establishment of the Joseph Needham Professorship of Chinese History, Science and Civilization

[19] STERCKX, Roel; In The Fields of Shennong, An inaugural lecture delivered before the University of Cambridge on 30 September 2008 to mark the establishment of the Joseph Needham Professorship of Chinese History, Science and Civilization

[20] YANG, Lihui; AN, Deming; Handbook of Chinese Mythology, col. Handbooks of world mythology, ed. ABC CLIO, 2005, ISBN 1-57607-807-8, pág. 71-72

[21] STERCKX, Roel; In The Fields of Shennong, An inaugural lecture delivered before the University of Cambridge on 30 September 2008 to mark the establishment of the Joseph Needham Professorship of Chinese History, Science and Civilization

[22] http://www.itmonline.org/arts/cupping.htm

[23] FACULDADE DE MEDICINA TRADICIONAL DE SHANGAI; Acupunctura Um Texto Compreensível, ed. ROCA, São Paulo, 1996

[24] http://www.badscience.net/2007/09/acupuncture-and-back-pain-some-interesting-background-references/

[25] http://www.badscience.net/2007/09/acupuncture-and-back-pain-some-interesting-background-references/. Ver também o livro do autor Bad Science, pág. 68

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